Carta de uma rapariga sobre a sua cadela

Amigos,
Esta semana tive de ir tratar de burocracias à minha Junta de Freguesia. Eu já detesto tratar de assuntos que envolvam papéis e procedimentos administrativos, demora sempre tudo muito tempo, os formulários a preencher são escritos em línguas estranhas que um comum mortal não pode entender e para obter um documento é sempre preciso outro que por sua vez depende de conseguirmos um terceiro que só nos dão quando tivermos o primeiro de todos. Enfim... Além disso, estas repartições, pelo menos em Modena, encontram-se sempre em bairros periféricos, que não são ordenados como o centro, até há vastos descampados ainda por urbanizar, o trânsito é rápido e as ruas largas e impessoais, dando tudo uma sensação geral de desconforto.

Eu e a Lee Cachorrinha só tínhamos ido à Junta de Freguesia uma vez, e tinha sido uma caminhada das difíceis. Até um certo ponto conhecíamos o caminho - íamos até ali para consultar o veterinário da minha cachorra. Daí em diante só contávamos com algumas indicações de amigos e com a possibilidade de pedir informações na rua aos transeuntes.

Nestas minhas caminhadas assim para o desconhecido, eu tenho tido a oportunidade de verificar que as pessoas têm muitíssima dificuldade em descrever por palavras um percurso. Elas gostam de apontar. E quando têm que falar, para explicar direcções para além de onde conseguem apontar, não têm a menor sensibilidade para perceber que o prédio amarelo dificilmente será um ponto de referência para um cego. Algumas pessoas que têm consciência disso, ficam tão em pânico por se verem sem uma linguagem comum para comunicar com o cego, que normalmente a minha opção é agradecer-lhes e dizer que pergunto a outra pessoa, porque vejo que entram em crise: "Oh meu Deus, como é que eu agora lhe vou explicar isso?!" Também há o género de pessoa que tem muito boa vontade em ajudar, mas tem outras dificuldades: a primeira delas é a de distinguir a esquerda da direita. Portanto, não tenhamos ilusões de encontrar alguém que conseguirá pensar que é melhor dizer vire na terceira rua à esquerda, em vez de dizer vire no primeiro semáforo à esquerda, porque para nós pode não ser claro se uma rua tem semáforos ou não, sobretudo quando o bairro é tranquilo e há pouco trânsito. Também ninguém conta com a possibilidade de uma entrada para um pátio, uma bomba de gasolina ou um parque de estacionamento poder ser confundida por nós com uma rua transversal.

Tudo isto torna a chegada a um destino desconhecido uma coisa muito difícil, e para o cão muito cansativa, porque se leva tempo e porque se fazem coisas estúpidas, como voltar para trás várias vezes, por nos termos enganado ou recebido informações correctas e detalhadas. Para o cão é ainda um trabalho difícil porque ele sabe que nós não estamos seguros, ele também não sabe e, na dúvida, sabe que não pode recorrer a nós.

Então, em meados de Agosto, eu e a Lee Cachorrinha empreendemos esta aventura toda para conseguirmos chegar às proximidades da Junta de Freguesia. Mas localizar a porta certa é outra missão. Sobretudo quando ela se encontra no interior de uma galeria que passa por baixo dos prédios, a qual por sua vez desemboca num pórtico que fica transversal à rua, isto é, numa posição em que ninguém se lembraria de procurar uma entrada, que normalmente é uma coisa que encontramos nas frentes dos prédios. Dessa vez conseguimos chegar com a ajuda de uns velhotes que me indicaram a direcção, dizendo que eu já tinha passado e precisava de voltar para trás, e que depois me gritaram que parasse quando eu ia a passar em frente da porta...

Pronto, depois disto tudo, vou saltar a parte de encontrar a repartição que queremos no meio de um prédio de repartições públicas... Dessa vez foi a parte mais fácil, visto que apanhámos uma senhora à entrada que nos acompanhou ao elevador, que estava marcado em Braille, e nos disse que era sair do elevador no segundo andar e virar à esquerda, que havia uma porta. Com estas indicações tão precisas, não foi complicado chegarmos, finalmente, à nossa meta.

Se consegui explicar isto tudo bastante bem, vocês a esta altura devem já estar solidariamente cansados, esgotados mesmo desta difícil caminhada sob o calor. E portanto podem compreender que não foi exactamente com entusiasmo que eu saí de casa anteontem, sabendo que tinha esta missão para realizar. Outra vez.

Primeiro fomos ao jardim, para a Lee Cachorrinha fazer todas as suas besonhas e estar confortável para a caminhada. Depois partimos, e ela pensava que íamos voltar simplesmente para casa, porque me falou nisso em cada ponto de travessia da rua na direcção da nossa. Mas eu explicava-lhe que continuávamos em frente e, depois de deixarmos a nossa rua para trás, ela resignou-se que afinal hoje o programa era outro e partiu a toda a velocidade.

Tínhamos que virar à direita numa transversal da rua em que estávamos. Eu não tinha a certeza de reconhecê-la, porque normalmente faço este percurso pelo passeio do outro lado, e é desse lado que tenho os meus pontos de referência. Mas não estava nada preocupada, sabia que a Lee Cachorrinha ia dizer para virarmos no sítio certo, até porque muito raramente vamos em frente para além daquele ponto, e ela, entre um caminho conhecido e um desconhecido, naturalmente propõe o conhecido. Assim foi, e lá continuámos a toda a velocidade, a conversar e a rir.

Até ao veterinário só houve dois momentos que não tiveram muita graça, os dois habituais. Um é a travessia de estrada de toda a Modena que eu conheço que eu menos gosto. Trata-se do Viale Itália, uma avenida muito larga - são pelo menos cinco faixas de rodagem - e onde o trânsito é intimidador, porque como é uma das saídas da cidade, já toda a gente vai a grande velocidade. E sendo já uma zona periférica, claro, não é fácil encontrar pessoas a pé a quem pedir ajuda. Como não vou para aqueles lados as vezes suficientes para saber de cor o movimento do cruzamento, normalmente o que faço é esperar alguns verdes e vermelhos, para aprender bem em que momento é que cada fila de carros se move, e em que direcção, Depois de ter a certeza que sei bem a sequência, então atravesso. Sempre faço a Lee Cachorrinha correr, porque apesar de ter a maior certeza possível do que estou a fazer, aquela travessia causa-me sempre insegurança, e ver-me livre dela é um alívio. Para a Lee Cachorrinha é um jogo: ela esforça-se por se despachar o mais possível, porque já sabe que do outro lado vai haver uma festa. Até já faz os últimos metros da travessia com a cauda a chicotear-me o joelho esquerdo, e uma vez no passeio, é só eu fazer um gesto ou dizer uma palavra que lhe dê o pretexto, e ela já se virou de frente para mim, para ganhar as festinhas que sabe que são o prémio deste jogo.

O segundo momento sem graça do percurso até ao veterinário foi a passagem junto à vedação de um jardim, dentro do qual há um canzarrão que sempre nos segue, do lado de dentro da cerca, e nos ladra muito muito muito. Aqui o passeio é muito estreito, e assim eu tive oportunidade de observar o quanto os cães se entendem e respeitam os territórios dos outros. A Lee Cachorrinha, das primeiras vezes que por ali passámos, queria absolutamente descer do passeio, para passar longe da cerca do cão. Foi preciso paciência, persistência e algumas viagens para a convencer de que não se podia descer para a estrada naquele ponto. Hoje ela sabe isso muito bem e é muito cumpridora, mas acelera sempre o passo e faz-me andar mesmo na beirinha do passeio, o mais longe possível do cão e do seu território. E eu deixo-a fazer assim, porque acho que já é tanto ela desobedecer a uma regra tão importante da sua sociedade para me contentar a mim.

Ao chegarmos perto do veterinário, obviamente ela começou a abrandar para me perguntar se era ali que íamos. Eu disse-lhe que hoje não, que desta vez continuávamos em frente, e ela abanou a cauda daquela maneira que eu já sei, tum tum, dois golpes no meu joelho, que querem dizer: "Ah! Isso? Então está bem! Apertem os cintos!". E que melhor explicado, quer dizer que ela pensou que, se viemos nesta direcção e o nosso destino não era aqui, então só pode ser o outro destino conhecido nesta direcção, e portanto sendo assim isso é tudo muito fácil e vamos embora a toda a velocidade. Conhecendo a minha cadela há quase quatro anos, e tendo tido esse tempo todo para viver aventuras com ela, eu tinha expectativas que ela se lembrasse de alguma coisa do percurso, apesar de só o termos feito uma vez, há quase dois meses. Mas nós fizemo-lo de maneira tão confusa, com avanços e recuos, que me parecia mais do que legítimo que ela se confundisse. Assim, contava que em alguns momentos ela me ajudasse, mas pensava ter que ser eu a ajudá-la em outros.

Porém, quando ela abanou a caudinha daquela maneira tão minha conhecida, eu soube que estava tudo sob controlo. Porque se ela não tivesse a certeza absoluta do que tinha a fazer, não teria tanta determinação. Teria dúvidas, ficaria na expectativa de indicações minhas, poderia mesmo ficar um bocadinho ansiosa. E nesse caso teria abanado a cauda de outra maneira, num gesto mais mole, sem convicção e meio nervoso.

Portanto, a partir do momento em que ela abanou a cauda assim, eu relaxei. Afinal não havia problema nenhum. E assim, com um abanar de cauda, a minha cadela removeu todas as minhas preocupações e ansiedades. E os quinze minutos seguintes de rápida caminhada foram exclusivamente o prazer de caminhar ao Sol com a Lee Cachorrinha e de me entregar descontraidamente a pensamentos ligeiros enquanto ela escolhia esquinas onde virar, lugares onde atravessar, enquanto geria a velocidade em função do estado do piso e do espaço no passeio à disposição de nós duas. Ela estava contente, que é, claro, quando ela trabalha melhor. Ela tem uns critérios lá muito dela, mas com os quais eu não posso deixar de concordar, sobre o que são trabalhos difíceis realizados com maestria e merecedores de biscoito no fim. Eu estava convencida que ela estava assim contente porque acreditava que este ia ser um dos tais desempenhos que mereciam mesmo prémio!

Só precisou de um "sim" da minha parte quando chegou à altura da rua da Junta de Freguesia em que era preciso virar para começar a percorrer o pórtico transversal. Eu senti-a suspender o passo um instante, nem chega bem a ser parar, meio diagonal para a direita, a perguntar se era caso de virarmos ali. Eu não fazia ideia se era ali que devíamos virar, mas pensei que ela não ia abandonar o ritmo em que vinha até aí para me perguntar se eu queria virar para um sítio onde nunca tínhamos ido. Por isso disse-lhe "sim" e ela retomou o ritmo anterior, encontrou o pórtico, percorreu-o, abrandou junto à esplanada do café, eu disse que não, continuou em frente, achou a entrada da galeria, enfiou-se por ali dentro e parou, a abanar muito a caudinha, já virada de frente para mim, à entrada do prédio da nossa Junta de Freguesia. Quando eu me baixei para lhe dar um beijo ela deu-me a pata, que quer dizer dá-me mas é o biscoito, que eu já estava desconfiada que merecia, mas agora que te vejo assim tão contente comigo tenho mesmo a certeza!

E, claro, a história do regresso a casa não tem nada que contar, porque como a Lee Cachorrinha sabia tudo, não houve nada que fosse digno de nota durante todo o percurso.

Quando me perguntam em que é que um cão-guia é melhor do que uma bengala, eu gosto de ter histórias assim para contar.

Abraços e beijinhos,


Cátia e Lee

Um comentário:

Ana Alvarenga disse...

O trabalho dos cães-guia é do mais gratificante e comovente que existe (se esta Modena é a mesma onde está a Ferrari, eu conheço e não é nada fácil...). Obrigada pela partilha, bj

"Sempre que um cão sai das minhas mãos para uma nova família, desejo que o tratem tão bem, ou ainda melhor, que eu. Desejo que compreendam que o cão não entra na suas vidas para os fazer felizes, mas, inversamente, a ideia é eles fazerem feliz o cão."